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Heranças de mortos sem herdeiro eram alvos de cobrança judicial por falsas dívidas; magistrado autorizava pagamento e teve parcela de rancho paga no esquema
Os alvos da Operação Follow the Money, deflagrada no início do mês, suspeitos de venda de decisões no Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJES) e fraudes processuais, devem ser denunciados criminalmente pela Procuradoria-Geral de Justiça do estado nas próximas semanas.
Um juiz foi preso e outro passou a ser monitorado por tornozeleira eletrônica, acusados de formarem uma associação criminosa, com os demais alvos, por inventarem cobranças de execuções judiciais de dívidas, para ficar com dinheiro deixado em contas bancárias por mortos sem herdeiro. Em pelo menos oito casos alvos do MP, foi apurado o desvio de mais de R$ 7 milhões.
Investigação dos promotores do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) aponta que a atuação do juiz Bruno Fritoli Almeida, do TJ capixaba, era essencial para os crimes. O magistrado está preso desde o dia 1º de agosto, quando foi deflagrada a operação.
O juiz Maurício Camatta Rangel, da 4ª Vara Cível de Vitória, e um genro dele também foram alvos. O magistrado não foi preso, mas afastado do cargo e obrigado a colocar tornozeleira eletrônica, medida cautelar alternativa, por ter autorizado uma liberação de R$ 3 milhões de uma herança que pode ter ligação com o esquema. Ambos negam as acusações.
O esquema
O SBT News consultou documentos do processo e mostra como funcionava o esquema de desvios de heranças em contas de falecidos, usando ações de execução de título extrajudicial simuladas.
“As investigações realizadas pelo Ministério Público Estadual fornecem indícios de que os investigados utilizavam, reiteradamente, técnicas consistentes em localizar/identificar pessoas falecidas, sem herdeiros necessários ou interessados, com valores vultosos em contas de instituições financeiras e/ou imóveis e pleiteavam, perante o Poder Judiciário, o cumprimento de supostos acordos extrajudiciais, com bloqueios de contas/bens e, seguida, levantamento e liberação de valores”, registra decisão da Follow the Money.
As apurações começaram após a Corregedoria do TJ do Espírito Santo identificar problemas nos alvarás assinados pelo juiz, que liberavam os saques das heranças. Falta de juntada de documentos nos processos, como forma de “impedir a descoberta da fraude”, e alvarás expedidos pessoalmente, sem comunicação ao cartório judicial, foram problemas encontrados.
O membros da Corregedoria destacaram que os problemas eram em casos de “falecidos, idosos, e em algumas das vezes, viúvos e sem herdeiros” e que um servidor chegou a alertar o magistrado sobre as possíveis fraudes nos processos. O Gaeco aponta que o grupo atuava em quatro núcleos, cada um com uma função.
Núcleos da organização criminosa, segundo Gaeco:
+ Familiar: responsável pela lavagem do dinheiro, via transferências entre si e pagamento aos integrantes
+ Advogados e partes: cuidavam das ações fraudulentas simulando as cobranças
+ Terceiros: altos valores em movimentação bancária, ocultação dos valores;
+ Núcleo judiciário: atuação imprescindível e necessária de colaboradores da Justiça e de um integrante.
O cabeça do esquema seria o advogado Ricardo Nunes de Souza, que também está preso. Ele entrava como defensor de partes nos pedidos simulados à Justiça e também recebia “direta ou indiretamente pagamentos”. Cuidava também de distribuir os valores por transferências para terceiros, como forma de “dificultar o rastreio e identificação da origem do numerário”, apontam os investigadores.
Já o núcleo judiciário, segundo o MP, tinha atuação “imprescindível” para que os valores parados nas contas fossem liberados e depois repassados aos demais.
Como funcionava o esquema alvo do MP:
+ Valores de heranças parados em contas, sem herdeiros a receber, eram informados ao líder do esquema, que dava início aos desvios;
+ Cobranças judiciais eram iniciadas por advogados parceiros, que usavam empresas do esquema para acionar a Justiça, reclamar dívidas a receber dos falecidos e apontar os valores em contas para recebimento por ordem judicial;
+ Pedidos de execução das dívidas eram direcionamento para os juízes envolvidos no esquema de forma fraudulenta;
+ Decisões judiciais liberavam os valores das heranças, para pagamento das dívidas simuladas, algumas vezes sem documentos ou sem aviso ao cartório judicial;
+ Dinheiro recebido era quase sempre depositado em contas do líder ou dos advogados aliados que iniciavam os pedidos, e depois repassados a ele. O montante então era distribuído aos envolvidos por meio de transferências entre contas ou pagamentos e compras de bens ligados a eles.
Seguindo o caminho do dinheiro — nome dado à operação —, os promotores reuniram provas de que parte do valor pagou parcela de um rancho no Córrego de Jatai, em Ecoporanga (ES), cidade que fica a 310 quilômetros de Vitória, adquirido pelo magistrado. Para os promotores, o caso é indício “veemente” da ligação dele com os crimes.
As provas mostraram que, em 27 de janeiro de 2023, o juiz assinou um dos dois alvarás expedidos por ele para o advogado Valdeir José Xavier, que liberou R$ 1.764.974,25.
“Identificou–se que a quantia foi imediatamente transferida para Ricardo Nunes de Souza que, por sua vez, em 30 de janeiro 2023, transferiu parte dos valores mencionados (R$ 105.000,00) para João Autimio Leão Martibns (pai do vendedor do imóvel, Patrick Leão Martins) como forma de quitação da primeiras parcela de um imóvel rural adquirido por Bruno Fritoli Almeida por R$ 210.000,00”, diz trecho de decisão da Operação Follow the Money.
Valdeir José Xavier é uma peça importante dessa engrenagem de golpes. Advogado, ele foi autor de alguns dos pedidos de cobrança ou figura como sócio-administrador das empresas usadas para simular as dívidas.
O Gaeco mostrou, pelo rastreamento do dinheiro, que valores das heranças, quando repassados a ele, depois iam para contas de Ricardo Souza, “mesmo este último não figurando como advogado ou parte nos processos”. Há casos em que o valor recebido, R$ 914, 2 mil, foi integralmente transferido para o “líder”.
Ação penal
A Procuradoria-Geral de Justiça do Espírito Santo prepara denúncia criminal contra os alvos, que foram ouvidos preliminarmente pelo desembargador Sérgio Ricardo de Souza, na última semana, nos dias 5 e 9. O MP vai pedir abertura de ação penal, em busca da condenação dos envolvidos, até o fim do mês.
Crimes acusados:
+ Organização criminosa;
+ Lavagem de dinheiro;
+ Corrupção ativa e passiva;
+ Fraude processual;
+ Falsidade documenta.
A Follow de Money foi deflagrada pelo Gaeco, com auxílio da Polícia Militar e Polícia Civil, no Espírito Santo, Rio de Janeiro e na Paraíba. Foram sete pessoas presas e 30 buscas e apreensões. O desembargador Sergio Ricardo de Souza determinou ainda o afastamento dos dois juízes, a suspensão da OAB de 13 advogados, proibição de contato entre eles e de acesso aos órgãos públicos e o monitoramento eletrônico de locais.
Na última sexta (9), os juízes foram ouvidos. Bruno Almeida. segundo a defesa, esclareceu todos os pontos. Os advogados Rafael Lima, Larah Brahim e Mariah Sartório aguardam análise do Pleno do TJ sobre a decisão do relator.
“Bruno Fritoli atua como magistrado há mais de uma década, sempre atuando com lisura e responsabilidade. Confiantes da índole de Bruno durante sua carreira no judiciário, seguirão acompanhando o desenrolar do caso e atuando, com os instrumentos da lei, pela sua inocência”, diz a defesa.