Foto: Reprodução/Inernet
Só mesmo um jornalista renomado como José Roberto Guzzo poderia ter coragem e o conhecimento suficientes para descrever minuciosamente como o ministro Alexandre de Moraes ‘chegou lá’.
Em mais um texto brilhante e elucidativo, publicado originalmente na Revista Oeste, Guzzo mostra como Moraes soube construir uma situação em que não tem rivais, não tem freios e não tem controles, e na qual está livre para governar o Brasil segundo o que acha que está “certo”, e não segundo o que diz a lei.
Onde o ministro Alexandre de Moraes acertou? Ele é hoje, ao mesmo tempo, condutor do Supremo Tribunal Federal, governador-geral do Brasil e único brasileiro que tem o poder de revogar, mudar ou escrever leis por conta própria, sem necessidade alguma de aprovação do Congresso Nacional. É óbvio, à essa altura, que acertou em alguma coisa para chegar ao lugar em que está. Provavelmente, acertou muito, e em muitas coisas — ninguém consegue se tornar o homem mais importante de um país com 200 milhões de habitantes e PIB de quase 2 trilhões de dólares, segundo FMI, cometendo erros, ou mais erros do que acertos. Pode-se “gostar” ou “não gostar” do ministro, como ele próprio comentou em relação à lei que permite o indulto presidencial. Mas o fato é que ele manda e todo mundo obedece, a começar pelo presidente da República — e se mandar mais vão obedecer mais.
Alexandre Moraes, hoje, decide mais que o Congresso Nacional inteiro; decreta, pessoalmente ou através dos outros ministros, que leis aprovadas legitimamente pelos deputados e pelos senadores não valem mais, ou cria as leis que os parlamentares não aprovaram, mas que ele quer — como é o caso, agora, da lei da censura na internet.
Vale, sozinho, mais que as três Forças Armadas juntas.
Pode fazer, e faz, coisas ilegais. Prende cidadãos. Bloqueia contas bancárias. Viola o sigilo de comunicações. Nega o exercício do direito de defesa. Dá multa de 22 milhões de reais a um partido político de oposição. Proíbe qualquer pessoa ou empresa (qualquer uma; até membros do Congresso) de se manifestar pelas redes sociais.
Eliminou as funções do Ministério Público. Enfiou na cadeia um deputado federal na vigência do seu mandato. Indiciou pessoas por conversarem num grupo de WhatsApp. Comanda no momento dois inquéritos ilegais de natureza policial (que podem ser seis, ou até mais; são tantos que ninguém consegue mais fazer a conta exata), nos quais se processa qualquer tipo de crime que o ser humano possa cometer, tudo junto e tudo misturado — do golpe de estado ao passaporte de vacina. Criou, e usa, algo que não existe no direito universal: o “flagrante perpétuo”.
Muito bem: um homem assim manda ou não manda mais que todos os outros?
A ascensão de Moraes ao topo da vida pública brasileira não aconteceu pelos meios comuns. Ele não teve uma campanha eleitoral milionária, com “Fundo Partidário”, apoio fechado do TSE e outras vantagens; aliás, não teve um único voto, e nem precisou. O ministro não vem de nenhuma família que vive às custas de suas senzalas políticas. Não é um bilionário como esses banqueiros de investimento “de esquerda” que vivem dando entrevista na televisão. Não precisou de apoio da imprensa, embora tenha se tornado um ídolo para a grande maioria dos jornalistas brasileiros — é tratado hoje como uma espécie de Che Guevara que lidera as “lutas democráticas” neste país. (O que provavelmente deve deixar o ministro achando muita graça.) Sua origem não tem nada a ver com o PT. Moraes foi nomeado para o cargo por Michel Temer, que Lula chama de “golpista” e é visto pela esquerda nacional como portador de alguma doença infecciosa sem cura. O passado político do ministro, ao contrário, o coloca como secretário de Geraldo Alckmin, nos tempos em que ele não usava boné do MST e era uma figura de piada para Lula, os intelectuais e os artistas da Globo.
Apesar de tudo isso, o ministro Moraes está lá. Como foi acontecer um negócio desses? Ou, de novo: onde ele acertou?
Acertou em muita coisa, essa é que é a verdade — e a primeira delas é que entendeu melhor do que ninguém a força e a utilidade da coragem num país em que o ecossistema político é habitado majoritariamente por covardes.
Moraes é um homem destemido — assume riscos, enfrenta adversidades e não foge da briga. No Brasil de hoje, faz toda a diferença.
O segundo ponto a favor é que soube escolher o lado certo da disputa política atual: percebeu, no momento adequado, que é mais rentável ficar a favor do Brasil do atraso, centrado no Sistema Lula, do que a favor do Brasil do progresso. (Imaginem se tivesse ficado com Bolsonaro e feito as coisas que fez — se tivesse, por exemplo, trancado na Papuda 1.500 agentes do MST que invadem fazendas e destroem propriedade pública. Estaria hoje no Tribunal Internacional de Haia, respondendo por crimes contra a humanidade.) Entendeu, também, que as instituições brasileiras são amarradas com barbante — e iriam se desfazer diante do primeiro homem decidido a falar grosso, desde que tivesse apoio da esquerda e vendesse a ideia de que está violando a lei para salvar a “democracia”. Com instituições fortes Moraes simplesmente não seria o que é; sua carreira já teria acabado por decisão do Senado Federal.
O ministro, igualmente, descobriu que não precisava ter medo de militar — e que isso é uma vantagem decisiva. O regime militar já acabou há quase 40 anos, mas o político brasileiro continua pensando nas Forças Armadas como se elas decidissem alguma coisa — os políticos e as multidões que foram para a frente dos quartéis após as eleições de 2022, na ilusão de que estavam “do mesmo lado”. (O Exército estava, como se viu, do lado da polícia.) Moraes nunca perdeu seu tempo com isso. Foi fazendo o que achou que tinha de ser feito, sem se preocupar com o que poderiam pensar os generais de Exército ou os almirantes de esquadra — e hoje deve estar convencido de que leu acertadamente as coisas. Por que não? Moraes acaba de colocar na cadeia um tenente-coronel da ativa, ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro, algo expressamente proibido em lei — ele só poderia ter sido preso em flagrante, e não houve flagrante algum. O comandante do Exército não deu um pio. Não se tratava de desafiar o STF, ou quem quer que seja; bastaria dizer que o Exército exige o cumprimento das leis em vigor no Brasil. Ele não vive dizendo que é a favor da “legalidade?” Então: era só cumprir o que diz. Não aconteceu nada.
Outra vantagem para o ministro é a sua capacidade de ignorar a opinião pública. Poucas vezes na história deste país uma autoridade do Estado conseguiu ter uma imagem tão horrível quanto a de Moraes — mas ele não faz nem deixa de fazer nada por causa do que “estão pensando”. O político brasileiro médio passa mal quando se vê fazendo, ou tentando fazer, alguma coisa que pode desagradar o eleitorado — afinal, é dos seus votos que ele vive. O ministro não liga a mínima; não é assim, simplesmente, que ele funciona. Ao contrário, fica mais radical, agressivo e perigoso a cada contrariedade. Ele deixou isso muito claro, entre outros episódios, com sua reação às imensas manifestações de rua do ano passado, e de antes, a favor de Bolsonaro — a quem escolheu como seu inimigo número 1.
Em vez de se assustar com aquelas multidões todas, resolveu meter as multidões na cadeia.
Deu certo, afinal: no 8 de janeiro ele conseguiu prender 1.500 pessoas de uma vez só, como “exemplo”, e de lá para cá ninguém mais pensou em acampar na frente de quartel. Para o ministro Moraes gente na rua é uma turbina sem potência — faz barulho, mas não tira o avião da pista. Tem dado certo até agora, do seu ponto de vista: está mandando mais, hoje, do que em qualquer outro momento da sua carreira.
Moraes, enfim, tem demonstrado que sabe fazer política do lado que ganha — é o contrário de Augusto Matraga, e isso quer dizer um mundo de vantagens para quem tem ambições de subir na vida pública. No momento mais indicado, soube trocar a direita “autoritária”, onde nasceu, pela esquerda que seria levada ao poder no movimento mais poderoso que já se viu até hoje na política brasileira: a guerra de extermínio contra a Lava Jato e o enfrentamento à corrupção. Passou para o lado da confederação anti-Lava Jato que levou Lula ao poder e, aí, soube assumir o papel de astro do filme — entre outras coisas, como presidente do TSE, foi quem realmente colocou o chefe do PT na Presidência da República.
É certo, também, que manda mais do que ele. Vivem os dois, hoje, num contrato de assistência mútua. Moraes dá proteção a Lula, defende os interesses do seu sistema e garante a segurança do universo lulista — para ficar num exemplo só, não incomodou, em quatro anos com os seus inquéritos policiais, um único simpatizante da esquerda. Quer dizer que ninguém do PT, para não falar do próprio Lula, divulgou uma fake news, nem umazinha, nesse tempo todo? É puro Moraes. Em compensação, nem Lula, nem a esquerda e nem ninguém do governo está autorizado a incomodar o ministro no que quer que seja. É a harmonia entre os Poderes.
Como em relação aos militares e à opinião pública, o medo que Alexandre de Moraes tem de Lula é de três vezes zero. Ele sabe, de um lado, que Lula não tem peito para encará-lo, e de outro, que está mais interessado em hotéis com diárias de 37.000 reais, discursos idiotas e o “liberou geral” para o assalto à máquina pública. Também não se assusta com a esquerda, o MST e os Boulos da vida. Sabe que todos têm pavor de bala de borracha; imagine-se então de bala de verdade. Suas preocupações com a Câmara e o Senado são equivalentes — ou seja, absolutamente nulas. O resumo de toda essa opera é o seguinte: o ministro soube construir uma situação em que não tem rivais, não tem freios e não tem controles, e na qual está livre para governar o Brasil segundo o que acha que está “certo”, e não segundo o que diz a lei.
Moraes se arriscou muito; poderia perfeitamente ter perdido, várias vezes, a começar pelo dia em que encarou Jair Bolsonaro. Mas o fato é que levou todas, e hoje é isso que todos estão vendo — só não manda naquilo em que não quer mandar. Nada poderia representar tão bem essa situação quanto sua última erupção de onipotência. Proibiu o aplicativo de mensagens Telegram de publicar sua opinião sobre a lei de censura que o governo Lula e ele próprio querem impor ao Brasil — e o obrigou a publicar a opinião dele, Moraes. Desde quando alguém neste país está proibido de dizer o que pensa sobre um projeto em debate no Congresso Nacional? E desde quando alguém é obrigado a dizer o contrário do que pensa? Desde Alexandre de Moraes. O caso Telegram é mais uma prova de que no Brasil de hoje não existe mais lei. O que existe é o ministro Moraes — e, para piorar, o resto do STF.
Com informações do Jornal da Cidade