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OPINIÃO:
Os políticos ainda não compreenderam que o mundo não é mais um “curral”. Que na era da internet, da informação e da comunicação em tempo real, o tradicional “voto de cabresto” se dissipou. Que a retórica populista e demagógica do passado não mais resiste às imagens e às denúncias do Instagram. Que não há mais espaço, portanto, para “coronéis” – ou “caciques”.
Hoje, a batalha política se processa em território virtual. São as redes sociais, cada vez mais, que decidem as disputas nesse novo “campo de guerra”. E as “armas” mais eficazes já não são panfletos impressos ou discursos de palanques, ao estilo presencial. Agora são lives produzidas “à distância”, de efeito instantâneo e amplificado, “viralizadas” em rede para todos os cidadãos colados nos iPads, nos mais inimagináveis becos e trincheiras, onde jamais os recursos analógicos ousariam acessar.
São os argumentos – sem intermediários – dos políticos em vídeo e a opinião on line dos influencers – e não mais a propaganda eleitoral maquiada dos experts da mídia televisiva – que determinam os rumos dos sufrágios. A internet recriou a “Ágora” – antiga invenção da democracia ateniense –, só que agora em modelagem virtual, igualmente participativa e interativa; até, mesmo, mais universal e inclusiva – já que, hoje, todos são “cidadãos” e “homens livres” –, com abertura a que todos (inclusive os “imbecis”) tenham o direito de se pronunciar a todos, em suas opiniões, em “praça pública” – recomposta nas telas – e a receber, incontinenti, os feed backs (ou não) de suas manifestações.
Sim, o mundo mudou; e, com ele, a política. A “sociedade em rede” instaurou uma nova ordem social, inédita em sua configuração e dinamismo, mais mutante e complexa, diversificada e exigente, com suas próprias “leis” e “mecânica” de funcionamento, agora radicadas numa escala mais elevada de interpendência entre as esferas da vida social e seus “politizados” atores.
Na alta modernidade em que vivemos, os impactos da técnica descolaram as experiências humanas – e a consciência social – das costumeiras e limitadas fronteiras da “aldeia”. Enquanto nesta, as noções de tempo e espaço estiveram sempre vinculadas à de “lugar” (“quando” implicava “onde”), o esvaziamento do tempo, isto é, a superação de sua dimensão cultural localizada e restrita e a sua substituição por parâmetros mais universais de contabilidade interativa (dilatados sobre o planeta) aportam uma inédita dinâmica de sociabilidade, no âmbito da qual as coisas acontecem e são registradas, programadas e vivenciadas por meio de interconexões que ultrapassam os limites do espaço circunscrito ao ambiente local. Redimensiona-se, em consequência, a própria noção de “espaço”, culturalmente percebida e experimentada, traduzida pela ideia siamesa de esvaziamento do espaço. As relações, assim, deixam de se circunscrever apenas aos sujeitos corporalmente presentes para interconectar atores fisicamente distantes – os “ausentes-presentes”, no dizer do sociólogo inglês Anthony Giddens –, que passam a “intervir” na cena local, condicionando-a.
O “local”, no atual cenário virtual e globalizado, não mais exprime uma experiência cultural limitada às pregressas fronteiras domésticas, “tribais”, comunitárias, mas evidencia a presença do “macro” no “micro”, do todo nas partes, do conjunto na particularidade. Está-se, por conseguinte, num outro tipo de sociedade, em que o cotidiano e o modelo cultural de vida envolvem significados, normas e condicionantes situados num outro patamar de dinamismo e complexidade, mais expansivo e flexível, numa espécie de passagem de um estado de rigidez societária, que historicamente entrou em ebulição, para outro de sociabilidade em que a fluidez das coisas, pelo impacto do emprego das tecnologias – que não param de evoluir –, torna-se o conteúdo das formas – ou a ausência definitiva dessas. Um estado permanente de desencaixes e reencaixes, de desterritorializações e reterritorializações que impregnam todas as esferas do mundo da vida – e do sistema –, impactando, inexoravelmente, na arena política – já sujeita a novas e imprevisíveis metamorfoses decorrentes do avanço da “revolução 5G” em curso, traduzida no uso da quinta geração de internet móvel em sistema sem fio.
O ritmo do movimento social, ancorado na base material das inovações tecnológicas, não para, assim, de sofrer subversões: o espaço deixa de ser “lugar” para se tornar “situação”; o presente, antes que se faça “agora”, já é passado; o “novo” é velho; a “novidade”, arcaica; o futuro – como se fosse o eterno presente tornado passado – encontra sua simbologia arquetípica no computador de última geração, já programado para nascer ultrapassado. Na expressão do velho filósofo alemão: “tudo que é sólido se desmancha no ar” – ou vira “líquido”, na atualização semiótica proposta pelo cientista social polonês Zygmunt Bauman.
As antigas sociedades “fechadas”, de domínio restrito – reinos habituais do “coronelismo” –, cederam lugar às sociedades “abertas”, mais fluidas e de difícil controle. Mais informada e “plugada” – ainda que deveras superficial no domínio do conhecimento –, a população “conectada”, epidermicamente “politizada”, mais cônscia de seus direitos, tornou-se implacavelmente exigente. Cobra do Estado e dos políticos atuações (e soluções) mais republicanas e eficazes, voltadas ao bem comum e ao interesse coletivo. Já não é enganada com facilidade pelos discursos. Já não se deixa iludir com a aparência das performances. É crescentemente consciente de seu poder eleitoral numa democracia e faz valer esse poder na hora de recolocar – ou excluir – os políticos nos espaços de representação. Estes, doravante, estarão permanentemente sob mira; mapeados por observação crítica; e serão cobrados diuturnamente de seus atos e pronunciamentos. Os programas inteligentes de monitoramento do comportamento da classe política, pela sociedade civil, desenvolvem-se e se aperfeiçoam a cada dia, projetando, pela primeira vez na história – graças às tecnologias disponíveis –, a possibilidade de um controle cotidiano e efetivo dos eleitores sobre os seus representantes.
É toda essa grande e incessante transformação que desnorteia os políticos “do passado” ainda sobreviventes, que se sentem ameaçados em seus costumeiros e cômodos “redutos”, já desconfiados – a contragosto – de sua inexorável obsolescência. Acusam as redes sociais de fake News, como se “fake” não fossem as suas próprias trajetórias, consuetudinariamente construídas sobre ilicitudes e mentiras – com a cumplicidade (também ela enganadora) da grande mídia.
Sim, os valores e as estruturas da “velha política” estão a desmoronar ante o desabrochar de uma inédita complexidade societária que se move. Pelo andar da carruagem, a democracia contemporânea, do século XXI, exigirá novos tipos de políticos, de mentalidade mais republicana e menos corporativa, afinados e comprometidos com o “interesse geral” (com as aspirações do conjunto da coletividade), sem os subterfúgios, as tergiversações e as esparrelas de costume.
As tecnologias de uso comum e massificado imporão – numa perspectiva otimista (mas possível!) – uma maior transparência no exercício da política. A hegemonia, nesse novo contexto, já não derivará do arcaico recurso à ideologia (em si mesma uma fake News), mas da comprovada capacidade de inovação do gestor (ou do legislador) na solução eficaz dos problemas objetivos da vida em sociedade, segundo a expectativa da maioria da população – doravante mais palpável e ativa na imposição de sua soberania. Talvez somente então poderá ser proclamada, finalmente, no Brasil, a República. Somente então.
Por:
Alex Fiúza de Mello. Professor Titular (aposentado) de Ciência Política da Universidade Federal do Pará (UFPA). Mestre em Ciência Política (UFMG) e Doutor em Ciências Sociais (UNICAMP), com Pós-doutorado em Paris (EHESS) e em Madrid (Cátedra UNESCO/Universidade Politécnica). Reitor da UFPA (2001-2009), membro do Conselho Nacional de Educação (2004-2008) e Secretário de Ciência e Tecnologia do Estado do Pará (2011-2018).
Com informações do JCO